Não me sinto uma mulher como as outras.
Por exemplo, odeio falar sobre crianças, empregadas e liquidações.
Tenho vontade de cometer haraquiri quando me convidam para um chá de fraldas
e me sinto esquisita à beça usando um lencinho amarrado no pescoço.
Mas segui todos os mandamentos de uma boa menina:
brinquei de boneca, tive medo do escuro e fiquei nervosa com o primeiro beijo.
Quem me vê caminhando na rua, de salto alto e delineador,
jura que sou tão feminina quanto as outras:
ninguém desconfia do meu anti socialismo interno.
Adoro massas cinzentas, detesto cor-de-rosa.
Penso como um homem, mas sinto como mulher.
Não me considero vítima de nada.
Sou autoritária, teimosa, impulsiva e um verdadeiro desastre na cozinha.
Peça para eu arrumar uma cama e estrague meu dia.
Vida ca é para os gatos.
Tenho um cérebro masculino, como lhe disse,
mas isso não interfere na minha sexualidade, que é bem ortodoxa.
Já o coração sempre foi gelatinoso,
me deixa com as pernas frouxas diante de qualquer um que me convide para um chope.
Faz eu dizer tudo ao contrário do que penso:
nessas horas não sei onde vão parar minhas idéias viris.
Afino a voz, uso cinta-liga, faço strip-tease.
Basta me segurar pela nuca e eu derreto,
viro pão com manteiga, sirva-se.
Sou tantas que mal consigo me distinguir.
Sou estrategista, batalhadora, porém traída pela comoção.
Num piscar de olhos fico terna, delicada.
Acho que sou promíscua.
São muitas mulheres numa só, e alguns homens também.
mas nada me dá mais prazer do que ser persona non grata,
expulsa do paraiso, uma mulher sem juízo,
que não se comove com nada cruel e refinada que não merece ir pro céu,
uma vilã de novela mas bela, e até mesmo culta, estranha,
com tantos amigos e amada, bem vestida e respeitada...
aqui entre nós melhor que ser boazinha é não poder ser imitada.
Martha Medeiros
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